No
primeiro momento, vem a rejeição. Ter uma bolsa coletora parece uma
medida constrangedora e desagradável. Mas, depois, a resistência inicial
é trocada por um sentimento bem diferente: a gratidão. “Nós até a
chamamos de bolsa da vida”, define Guilherme Caetano Lucas,
vice-presidente da Associação dos Ostomizados de Brasília (Aosb). O
objeto é obrigatório para quem tem um ostoma abdominal — uma abertura
que liga o intestino ou o sistema urinário ao ambiente externo. O órgão
afetado não pode ser controlado voluntariamente, por isso a necessidade
de um recipiente coletor.
Qualquer pessoa pode vir a precisar do
procedimento de ostomia (ou estomia). As causas são variadas. “As
principais são o câncer e doenças inflamatórias, como uma diverticulite
aguda operada em emergência”, destaca o proctologista Fernando Lyrio.
Ele acrescenta que a ostomia, em algumas situações, é usada no
pós-operatório de cirurgias no intestino e tem papel protetor. Ela
facilita a cicatrização e evita infecções. Outras causas são
traumatismos decorrentes de acidentes e má-formação congênita. A
intervenção é temporária ou permanente, a depender da normalização das
funções do reto. Quando ele não funciona de forma adequada e precisa ser
removido, a ostomia é definitiva. “Felizmente, a maioria dos casos é
reversível”, afirma o especialista.
Presidente da Aosb, Nilza
Fonseca, 59 anos, passou por uma colostomia (ver quadro) devido ao
diagnóstico de doença de Chron, condição crônica de inflamação no
intestino. Os sintomas mais comuns são dor abdominal intensa e diarreia.
Apesar do sofrimento, ela conta que não aceitava a possibilidade de
usar uma bolsa coletora. “Eu dizia que preferia morrer a passar por uma
ostomia. Mas, quando vi que ia morrer mesmo, eu tive que fazer”, relata.
Com o procedimento, ela retomou a qualidade de vida e mudou
completamente de opinião. “Hoje, eu estou superbem. É como se eu não
tivesse nada. Faço academia, dança de salão, viajo, vou à praia”, diz,
animada.
No
entanto, os primeiros dois anos foram difíceis, pois o procedimento foi
realizado de forma errada, a ostomia estava mal posicionada. Ela teve
complicações, um prolapso (intestino exageradamente para fora) e
fístulas (feridas profundas ou úlceras no trato intestinal). “Eu vivia
internada, perdi bastante peso e sentia muita dor. A situação me deixava
muito triste. Eu sempre fui vaidosa, mas estava usando vestidos enormes
para me esconder”, descreve. Os problemas foram resolvidos com a
realização de uma nova ostomia, desta vez bem-sucedida. “Foi o que
trouxe a minha autoestima de volta”, afirma Nilza.
Além de
prolapso e fístulas, outras complicações podem ocorrer, como a estenose
(estreitamento do ostoma) e a dermatite periestoma. Esta última ocorre
quando a abertura da bolsa coletora é de tamanho inadequado. “As bolsas
têm que ser cortadas no diâmetro perfeito. Caso contrário, as enzimas
digestivas e outras secreções vão atingir a pele, provocando dor e
possíveis infecções”, afirma o proctologista Fernando Lyrio.
Segundo
a estomaterapeuta (enfermeira especializada em estomia) Ana Lúcia da
Silva, três fatores fundamentais para uma boa recuperação. “O apoio dos
familiares, o suporte dos profissionais e o acesso a material de
qualidade e em quantidade suficiente”, lista Ana Lúcia, que também é
professora do Departamento de Enfermagem da Universidade de Brasília. O
hospital universitário tem um serviço de atendimento cujo foco é a
reinserção social dos pacientes. “Eles podem sentir vergonha e passar
por constrangimentos. Acabam deixando de sair de casa e ficam em
isolamento”, lamenta. Na verdade, levando em consideração alguns
cuidados, a vida do ostomizado seguirá com qualidade.
Sem dúvida,
a alimentação dessa pessoa deverá ser saudável, com restrição a
refeições que provoquem diarreia, constipação e gases. Os exercícios
físicos podem ser praticados, desde que não envolvam esforço excessivo
nos músculos abdominais. Também é preciso evitar colisões ou traumas na
área do ostoma. O apoio de uma equipe de diferentes profissionais é um
fator importante, podendo incluir estomaterapeutas, nutricionistas ou
nutrólogos, psicólogos e um médico especializado na área de realização
do ostoma. A estomaterapeuta Thais Salimbeni incentiva o contato com
pacientes ostomizados já adaptados à nova rotina. “O iniciante vê que é
possível ter uma vida normal”, afirma Thais, que também é assessora
técnica de uma empresa de materiais para ostomia.
Ela destaca que
a sexualidade é outro tema importante no processo de adaptação. Em
alguns casos, a lesão danifica a região genital/reprodutora. Mas, de
modo geral, isso não ocorre e as limitações são poucas. “Tentamos
mostrar que a sexualidade não é só o ato sexual em si — tem o lado da
troca de carinho, do diálogo. E as pessoas podem usar a criatividade,
usar uma cinta, lingeries diferentes”, recomenda.
“Não é muito
bonito ou erótico, mas a sexualidade não está ligada somente ao corpo. É
possível se relacionar normalmente, não precisa se privar de uma vida
afetiva e íntima”, opina Guilherme Caetano, 42 anos. Ele tem uma
ileostomia há cerca de dois anos, quando teve uma doença inflamatória no
intestino chamada de retocolite ulcerativa. Ele conta que a ostomia foi
um incentivo para dar mais atenção à saúde e sair de uma vida
sedentária. Ele caminha e faz alongamentos regularmente. Um dos motivos
para manter a boa forma é ter melhor aderência da bolsa, o que é mais
difícil com a obesidade.
Guilherme também acredita que a imagem
sobre si mesmo tem um papel fundamental na recuperação. “As pessoas com
melhor autoestima são as mais motivadas, colaboram com o tratamento e
encaram a situação com mais facilidade. É preciso focar no que você é
capaz e não na limitação ”, afirma. O processo de se aceitar e se
recuperar é mais fácil com informação e apoio. “Quando a pessoa está
preparada psicologicamente, tem uma cirurgia benfeita e uma bolsa de
qualidade, tudo ajuda a ter uma qualidade de vida melhor”, considera
Nilza Fonseca.
Ainda assim, ela admite que sente um pouco de
constrangimento. “É algo muito íntimo, as pessoas não gostam de ver.
Tive muito apoio do meu marido e das minhas filhas, mas evito trocar a
bolsa na frente deles.” Ela acredita que as mulheres têm mais
criatividade na hora de lidar com a ostomia. Damaris Moraes, 50 anos, é
um exemplo. Ela escreveu a cartilha Mulher com ostomia: você é capaz de
manter o encanto.
Entre outras orientações, ela mostra que é
possível ser fashion, com dicas para customizar a bolsa coletora e
ideias do que vestir na praia e nas situações cotidianas. Damaris conta
que foi diagnosticada aos 20 anos com retocolite ulcerativa. Com o
passar do tempo, o caso se agravou e parou de responder ao tratamento
medicamentoso. “Eu tinha dor, diarreia o dia todo, perdia muito sangue.”
A ostomia veio aos 35 anos, quando ela já não conseguia nem se levantar
da cama.
“Quando o médico me falava da ostomia, eu pensava que a
minha vida ia acabar, que o meu marido ia me largar. Mas a aceitação
dele foi anterior à minha. O olhar dele sobre mim foi muito amoroso e
ele não perdeu o desejo por mim”, descreve. Ela acredita que, quando a
pessoa passa por uma doença grave, a aceitação da bolsa ocorre com mais
facilidade. “O paciente fica aliviado de não sentir mais dor. Eu estava
muito doente e comecei a ficar bem.”
Assim, ela se adaptou
rápido. “Eu resolvi que precisava lidar com aquilo da melhor maneira
possível.” Uma enfermeira notou a evolução dela e começou a convidá-la
para conversar com outros pacientes. “Eu resolvi tirar várias fotos e
fazer um álbum para a enfermeira mostrar aos demais pacientes.” Daí
surgiu o incentivo para escrever a cartilha, que, este ano, ganhou uma
sétima edição em formato de livro.
Damaris acredita que as
informações são importantes para ajudar a diminuir o preconceito sobre o
tema e aumentar a confiança dos pacientes. Ela afirma que a autoestima
está muito relacionada com a forma como vemos as pessoas e nos
identificamos com elas. “As mulheres se veem bonitas quando veem outras
com ostomia se divertindo e vestindo roupas legais”, afirma.
Ela
também faz um trabalho voluntário de visitar os pacientes que precisam
da ostomia. Ela diz que se motivou após ouvir o depoimento de uma
esposa, na Associação de Ostomizados de Goiás, estado onde mora. “Ela me
disse: ‘Se o meu marido tivesse conhecido vocês antes, ele não estaria
morrendo hoje. Ele disse que preferia morrer do que ter uma bolsa de
fezes’”, relata. O contato com os pacientes a estimulou a estudar
psicologia. Ela está no último ano do curso. Damaris era professora de
inglês, mas foi aposentada por invalidez. Um de seus planos é voltar a
trabalhar, já que sente apta para isso.
Na cartilha, um conselho
se sobressai: “Uma coisa que todos temos em comum: queremos ser aceitos,
inclusive por nós mesmos. Nossa imagem corporal mudou e, cá entre nós,
não ficamos com abdomens mais bonitos, isso é um fato. Mas, foi por uma
boa causa, isso é também é um fato. Quando chegamos nesse ponto, estamos
prontos a tirar o melhor partido possível da nossa realidade”.
Um longo período de provação
Dezenove
anos sem sair de casa. Enquanto muitas pessoas têm dificuldade em
aceitar a bolsa coletora, ela era um sonho para Ivanildo Silva. Não
existia material adequado para o caso dele, que precisou contar apenas
com curativos. Eles precisavam ser trocados com frequência, a cada duas
ou três horas, o que o impossibilitava de sair e até de dormir com
tranquilidade. O problema foi iniciado após repetidas crises de
apendicite, que provocaram uma infecção generalizada. Foram 11 meses de
internação, três deles na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “Eu pensei
que ele não escaparia, mas preferi acreditar em um milagre”, admite a
mãe, Maria do Carmo de Souza, 70 anos. Uma enfermeira perguntou se ela
era religiosa, pois aquele era o momento de chamar um padre. E assim
Ivanildo recebeu uma extrema-unção.
Ele perdeu metade do
intestino e, no pior momento, teve 18 fístulas no corpo. As feridas
expostas que não cicatrizavam impediam que a bolsa coletora se fixasse
na pele. Quando finalmente saiu do hospital, pesava 44kg, com 1,72m de
altura. “Isso me afetou muito psicologicamente. Eu senti depressão,
estresse, angústia. E sofri muitas perdas”, conta. Aos 24 anos, ele
precisou deixar o emprego como comerciante e perdeu a noiva, mas faz
questão de defendê-la. “Ela está totalmente perdoada, a minha situação
era muito crítica”, afirma.
Mesmo um simples copo de água
provocava desconforto. As fístulas vazavam com facilidade o líquido do
intestino e provocavam ardência. “Cheguei a pensar que mais valia a
morte do que a vida. Eu não vivia sem a bolsa, só sobrevivia”, define
Ivanildo. Para enfrentar os problemas, ele buscou a religião. “Eu dobrei
o joelho e pedi muita força.” Ele acredita que, para superar uma
situação de dificuldade, o primeiro lado a ser fortalecido é o
espiritual. “Se a mente e o espírito não estiverem bem, o corpo não
reage”, opina.
Há dois anos, um estomaterapeuta trouxe a boa
notícia de que existia uma bolsa adequada para o caso dele. Foram quatro
meses de tentativas e visitas de especialistas de vários estados até
encontrar o modelo certo. Ele ainda precisou esperar quatro meses para
ter confirmado pela Justiça o direito de receber os materiais, que não
eram fornecidos pelo sistema público de saúde.
O primeiro sono
com a bolsa trouxe uma sensação que ele tinha esquecido. “Depois de 19
anos, eu consegui dormir uma noite direito”, conta. Ele guarda um
sentimento de profunda gratidão aos profissionais que o acompanharam.
“Por tudo que eles fizeram por mim, hoje eu tenho vontade de viver. Não
vou desistir, é uma questão de ser grato e reconhecer todo o tratamento
que recebi”, afirma. Agora, com 45 anos, ele pode se alimentar melhor e
até se preocupa em manter o peso. Acorda cedo, às 6h, e logo faz uma
caminhada de 8km, além de se exercitar nas academias comunitárias ao ar
livre. Também tem um hobby: cuidar de um peixe beta azul-escuro.
Ivanildo conta que o indicado é oferecer apenas três bolinhas de ração,
mas ele, que passou tanto tempo sem poder comer direito, não consegue
dar tão pouco alimento. Ivanildo se solidariza com a situação do
peixinho. De certa forma, ele sabe como é viver em um aquário.
Tipos de ostomia
A
palavra estoma (ou ostoma) tem origem grega, stóma, e significa boca.
Assim, a ostomia representa vários tipos de abertura de um órgão para o
exterior. Exemplos são a traqueostomia, realizada na traqueia para
permitir a passagem de ar; e a gastrostomia, realizada no estômago para
permitir a chegada de alimentos por uma sonda. As variações que precisam
de uma bolsa coletora são as seguintes:
» Ileostomia: comunica o
intestino delgado com o exterior. Elimina fezes líquidas e funciona
várias vezes ao dia. Normalmente, localiza-se na parte inferior direita
do abdômen.
» Colostomia: comunica o intestino grosso com o
exterior. Elimina fezes mais consistentes e funciona poucas vezes ao
dia. Pode ser localizada em vários locais do abdômen.
» Urostomia: comunica o aparelho urinário com o exterior. Elimina urina continuamente em forma de gotas.
Saiba mais
»
As bolsas coletoras e outros materiais associados (como a pasta ou pó
de proteção da pele) são fornecidos gratuitamente nos hospitais
públicos. Os planos de saúde também são obrigados a fornecer esses
equipamentos.
» Desde 2004, a ostomia é considerada uma
deficiência física. Tal condição garante o acesso a alguns direitos,
como acesso preferencial em filas e isenção de certos impostos. No
entanto, os benefícios dependem das características de cada caso, como a
incapacidade para voltar ao trabalho, a renda, a causa do procedimento,
entre outros fatores. Para conhecer os direitos, é importante consultar
uma associação de ostomizados ou um advogado.
» Em 2007, foi
criado o Dia Nacional dos Ostomizados: 16 de novembro. Em 2014, houve
outra conquista: a aprovação do símbolo nacional da pessoa ostomizada,
que deve ser colocado de forma visível em todos os locais que
possibilitem acesso, circulação e uso pelas pessoas com essa
característica. Um dos principais objetivos é identificar os banheiros
adaptados para o esvaziamento da bolsa coletora, que contam com uma
ducha, uma bancada e um vaso sanitário menor e mais alto.
» Não
existe um número oficial de pessoas com ostomia no Brasil. “Essa,
inclusive, é uma reivindicação nossa. Saber esse número ajudaria a
subsidiar as políticas públicas”, afirma Candida Carvalheira, atual
tesoureira e ex-presidente da Associação Brasileira de Ostomizados
(Abraso). Baseando-se nas associações brasileiras, a Abraso estima que
existam pelo menos 150 mil ostomizados. “Mas acreditamos que essa
quantidade seja maior. Nem toda pessoa com ostomia é ligada a uma
associação e muitos até escondem essa condição por vergonha ou medo de
perder o emprego”, lamenta Candida. Ela defende que é preciso levantar
os dados da rede pública e privada.
» Para mais informações,
entre em contato com a Associação dos Ostomizados de Brasília, nos
telefones (61) 8110-3443 ou 8426-6603. O grupo tem reuniões toda
primeira sexta-feira do mês, exceto em feriados ou próximo deles, quando
os encontros são transferidos para a sexta-feira da semana seguinte.
Leia aqui
A cartilha Mulher com ostomia — você é capaz de manter o encanto, de Damaris Morais: